VIII
Para o futuro
Completar vinte e cinco anos é
completar uma jornada em quartos: o quarto dos pais, o quarto de infância, o
quarto da juventude, o quarto de pensão, o quarto do casal. O quarto de lua, o
quarto de século, um quarto de vida. A trajetória é feita, portanto, de
quartos. Cada quarto tem sua característica peculiar, tem seu affaire particular. Um é aconchegante e retêm
as mais puras recordações dos primeiros passos dados, outro é conturbado e
confuso, outro, ainda, é sinônimo de liberdade e aventura, mas também de comprometimento
e responsabilidades. O último quarto, do casal, lembra que a jornada apenas
começara, e que um quarto de século é muito e ao mesmo tempo significa que
faltam três ou mais partes para o gran
finale.
A grande aventura, a aventura de
viver, essa que cada dia mostra uma nova faceta multi-interpretável de si
mesma, ensina a duras penas que o caminho é feito de dor e alegria, é feito de
tentativas e erros, de escolhas e acertos.
Cheguei até este ponto, completar meu
primeiro quarto de século, e isso me soa bastante, me parece uma quantidade
enorme de tempo. Esperdiçado com o que? Gasto fazendo uma enormidade de
inutilidades? Tentando ser reconhecido por nada? Entretanto, tudo me parecia
tão promissor... Tudo que fiz tinha um sentido, uma razão, um propósito ou uma
proposta de futuro melhor. E o tempo foi escoando como rio voraz. A duna de
areia singrou pela aridez do quartzo e a ampulheta verteu todo seu conteúdo
para um lado só. O tempo passou.
O tempo passou e insisto, nada fiz que
me parecesse realmente útil, com propósito significativo ou promissor. O tempo
passou e muito pouco se concretizara. O futuro almejado chegou, mas não era
assim – tão vazio – que o imaginei. O futuro chegou e não é tão bonito, tão
poético, tão cheio de significância quanto pensei que fosse. O futuro chegou.
O futuro chegou e me amedronta. Faz-me
parecer um garotinho mimado querendo voltar pra barra da saia de minha mãe. O
tempo é o monstro que saiu de baixo da cama, se escondeu no armário e perseguiu
as crianças para coloca-las em seu saco sem fundo. Ele leva as crianças para um
lugar sombrio e sem saída, donde o futuro as julga: boas ou más, felizes ou
deprimidas, com sucesso ou falidas.
O tempo é atroz e o futuro oprime. O
tempo é uma draga voraz que liquida com as más recordações, com ofensas e
desamores, contudo, também se alimenta de lembranças, de momentos e vai
apagando tudo da mente juvenil como uma grande borracha silenciosa: vai
limpando, vai limpando, vai limpando... O futuro atormenta, é iminente, quando
menos se espera irrompe o breu e nos aparece, de repente, mostrando sua face
fantasmagórica, sua intolerância singular, sua insolência arrogante. Dá-nos de
beber seu fel tinto e de comer, sua ambrosia azeda. O tempo é o governante
tirano e o futuro, o executor impiedoso.
Entre um e outro, entre tempo que governa
e futuro que executa, fico eu, sendo arrastado por ambos, ao infindo tempo que
não passa e futuro que não chega. Fico eu, espremendo suco de frutos inférteis
e esperando que brote esperança em ventres secos.
Um quarto de século se passou. Pouco
fiz, me parece. Todavia, muito falta, é o que dizem.
Sou jovem ainda, muito tempo há para
desbravar o próprio tempo e galopar num futuro esplendoroso. Domar o tirano e
ceifar os braços do executor. Tornar-me-ei livre e serei único dono de meu
destino desatinado, único senhor de meu futuro rebelde.

A minha alma se refugia num canto da
sala, se encolhe em posição fetal e chupa seu dedo, apavorada. O que ela teme?
O futuro.
Vivo nessa angústia, nesse “sem saber”
o que é exatamente este sentimento de quartos. Vivo a me perguntar se isto é
uma crise. Se é normal, em minhas reflexões, pensar que já deveria ter tomado
mais atitudes positivas em minha vida e, ao mesmo tempo, que ainda sou jovem e
tenho tempo para muito fazer. Bom, se for uma dessas crises existenciais que
acometem o espírito de tempos em tempos, a cada certa idade, então espero que
eu crie sobre a crise a cria de seu tormento: uma grande tumba sobre a qual eu
e minhas ideias possam se erguer triunfantes.
Já que espero guardar este documento
como declaração de meu pensamento, confuso e conturbado, na altura de meu primeiro
quarto de vida, pensei em fazer uma lista das coisas que aprendi. Entretanto
isto me pareceu meio perigoso, pois me falta tanto a aprender. Pensei em fazer
uma retrospectiva de fatos que se passaram, contudo isto me pareceu herege e
incômodo, pois afronta o passado (deixemo-lo dormir) e é tão pouco ainda que
não dá um conto terminado.
Então deixo a única mensagem
plausível, com alguma validade e que não necessita fundamentação alguma: paz.
Que se cultive a paz entre todos nós,
seres humanos, jovens ou não. Que os próximos quartos que virão, sejam de
séculos ou de estadia, sejam de paz. Sim, a paz parece-me o único caminho para
a reflexão, para exterminar com qualquer crise – inclusive existencial – interior
ou exterior ou extraterrestre. Porque às vezes parece que nem pertenço a este
planeta.
Não pertencer traz vantagens: um bom
ponto de observação, distante e indiferente, sem interferências (como
aprendemos na academia, como deve ser o referencial idealmente concebido).
Todavia, é tão solitário.
Solidão não é bom. E já que estamos
falando de quartos, vou recolher-me ao meu. Sem antes, é claro, acalmar minha
alma atormentada pelo futuro e recolher meu ego capturado pelo tempo. Vou então
apreciar o momento, vou libar do sereno noturno, vou caminhar a esmo só pelo
prazer de caminhar a esmo, vou zombar do tempo e debochar do futuro. Depois vou
pedir perdão, me concentrar e tentar conviver com mais um quarto de luar, sem
ficar cativo nem do tempo nem do futuro, pois contra estes ninguém poderá
investir. Não há armadura que resista, não há coragem que os atormente, nem há
fórmula que os congele.
Fico feliz se, a cada vez que alguém
completar um quarto de século, resolver redigir uma mensagem de paz. Talvez
isso seja significativo e possa atingir o coração de quem não a tem. Ou a nós
mesmos, no futuro, se acaso a perdermos – a paz de espírito.
Já estou curioso para ver o que será
daqui a meio século, quando mais um quarto tiver passado por mim, quando mais
um tempo estiver me desbravando e quando outros silêncios estiverem me
atormentando. Já estou curioso para perscrutar minha própria consciência,
invadir meu espírito e verificar se a crise terminara; se o tempo conspirara
positivamente, se o novo texto será tão confuso, metafórico e angustiado com o que
há de vir, quanto este que ora desabafo.
Na verdade fica a carta para o futuro,
remetida de mim mesmo para o meu próprio eu. Ficam estes reflexos meus n’água,
que são reflexões de mim mesmo para o eu que existe em mim. Todavia, não o eu
de agora. O destinatário será o eu do futuro, para o ser no qual me tornarei, o
eu que ainda virá.
E já que são reflexos, claramente
refletidos nas águas paradas, que reflitam bem as palavras, que podem ser
anagramas de mim mesmo, tentando me avisar sobre a proximidade do temível
futuro. Mas, reflexos se dissipam em águas turbulentas e o tempo há de bagunçar
tudo, como fazem as águas turbulentas. Ele jogará todas as palavras,
meticulosamente alinhadas por mim, em seu saco sem fundo e isso as amontoará
randomicamente, de forma que o anagrama seja cada vez mais e mais insolúvel ao
passo que o tempo for andando e passando e andando e passando...
Que assim seja. A simetria encontra
seu espaço entre a casualidade. Vejamos se o próximo quarto de século será o
reflexo deste último na vida de cada qual que ler estes reflexos.
Será o quarto oculto da lua espelhando
a si mesma? Ou os espelhos serão derretidos no calor de décadas, feito vidro
pouco espeço, escorrendo dos vitrais do tempo, tal líquido que é, permitindo
que os reflexos se dissipem como águas turbulentas?
Marcius Andrei Ullmann
14 de maio de 2012