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Contos

Relógios no destino



Eram cinco e quarenta e cinco da madrugada quando acordei, arrastei meus pesados pés até a pia do banheiro, onde enxuguei os olhos. Ainda sonolento, pus-me a prestar atenção ao relógio que há muito tiquetaqueava na parede; um velho relojo de ponteiros, trabalhado em madeira, encimado por uma ave que desconheço e com uma janelinha lateral permitindo ver as engrenagens e polias que constituíam sua engenharia, seu pêndulo curto alojado atrás da portinhola de vido oscilava num constante compasso melancólico. Este artefato cronológico me fora dado de presente pelo meu pai, em data de meu matrimônio.
Num repente instantâneo, fui ferozmente interrompido da minha hipnose pendular por uma sirene, sabia que era de uma ambulância que corria, no mínimo, a cem por hora. Olhei pela basculante do banheiro e do meu apartamento conseguia avistar a larga e congestionada avenida lá em baixo, porém, daquela altura, não me era possível distinguir a ambulância ao meio do trânsito caótico.
Fui para a cozinha onde, enquanto preparava o café e mexia a colherinha, pensava no que acontecera. Talvez a ambulância estivesse levando mais um inocente envolvido num acidente ou, talvez, um bêbado em estado de coma alcoólico. Novamente fui despertado desta elucubração pelo apito de um relógio, mas desta vez fora o despertador; um relógio de aspecto moderno, porém com indicadores em números romanos, pequenino e quadradinho, de cor negra como o são estes artefatos modernos e tecnológicos. Logo em seguida tocou o celular, não foi preciso atender a chamada, li a mensagem no visor, talvez eu já esperasse por aquilo. Vestido eu já estava, apenas peguei o sobretudo branco no armário e grampeei meu crachá sobre o bolso esquerdo, então corri, corri o mais que pude até o estacionamento, entrei no meu carro, dei a partida, dirigi-me rápido, mas com cautela, para meu destino.
Logo que entrei no estabelecimento, alguém me chamou:
- Doutor! Por aqui doutor!
O hospital era grande. Eu como médico experiente já sabia a tarefa, logo vi, deitado sobre a maca um corpo, a princípio inerte. Aproximei-me para junto da maca e lá estava, a sena mais comovente que já presenciei: era um garoto, um menino de sete anos, desfalecido qual cadáver – de certo mais alvo e sem vida que um. Foi passado o prontuário, havia um projétil que atravessara seu peito, atingira o pulmão e estava enterrado quase nas costas do infeliz. O garoto fora alvo de uma bala perdida.
Da sala de espera podiam-se ouvir os berros da mãe, o desespero do pai e alguém tentando confortá-los. O pai punha-se a narrar o fato como um louco para si próprio, entre prantos e lamentos. Em meio ao monólogo aflito e suplicante daquele pai, pude imaginar o garoto brincando em frente à casa onde morava, puxando com uma cordinha um caminhãozinho cheio de areia ou brita qual eu fazia quando criança. De repente, de um beco obscurecido pela sombra de um imenso prédio, veio o som derradeiro, o som da morte certeira, o som do disparo impetuoso de um revólver, várias vezes repetido. E, em uma dessas vezes, fez-se com que a trajetória incerta das balas atingisse o garoto...
A corrida contra o tempo, agora, para salvar aquela frágil vida começara e cada ponteiro, de cada relógio parecia uma seta de besta pronta a disparar sua derradeira munição. Também, do meu rosto corriam algumas poucas lágrimas. Analisei o estado do garoto, enquanto a maca era empurrada para a sala de cirurgias, pedi à enfermeira que preparasse o respirador e o resto do material. O tempo passava... Já na sala de cirurgias vi, no braço do garoto, um relógio. Dentro daquela sala branca, de teto e assoalho e lençóis brancos – o único azul eram os aventais dos outros médicos e enfermeiros e suas toucas. Naquela imensidão branca qual papel cetim, ali parecia que só eu reparava no adereço que, suave, pendia em torno do braço do garoto.
Era um relógio de pulseira negra com detalhes que não consegui identificar, tinha uma forma geométrica parecida com a porca de algum parafuso, ao fundo um desenho, uma galáxia espiral, incontáveis estrelas faziam do relógio um hemisfério noturno sem luar, dois ponteiros brilhantes formavam um ângulo de cento e oitenta graus, indicando seis horas daquela manhã de inverno. Havia naquele artefato, também, um marcador digital que contrastava números arábicos com os romanos da orla geométrica, que circundava o aparelho. Mas um detalhe me chamara à atenção, o vidro que protegia a face interna estava quebrado e, no canto superior da pulseira, estavam inscritas as iniciais exatas de meu nome.
Nesse momento ponderei. Um ponto de interrogação pairava em meu âmago. Como poderiam as minhas iniciais estar encravadas naquele instrumento, qual fora ou é ou ainda será por algum tempo objeto de brinquedo infantil? Porque as mesmas letrinhas de meu nome estavam prontamente dispostas na pulseira daquele relógio? Haveria aí um desígnio misterioso das leis Divinas ou operara simplesmente o caos, impreterível ditador de coincidências?
Lembrei-me, então, de minha infância, de quando brincava de fronte a minha casa, num pequeno pátio gramado, no qual nenhum cercado impedia o livre vôo da imaginação – em época que não eram necessários tais cuidados que tornam cativo o bom cidadão, cativo de sua própria residência – lembrei-me, pois, que tivera um relógio idêntico aquele no braço do garoto!
Pouco tempo após tê-lo ganho, tracei nele minhas inicias e pouco tempo após ter efetuado o trabalho de identificação pessoal, perdi-o em meio à cidade... Num lampejo de memória, me veio a imagem correta d’eu menino, andando pela cidade em outro momento de minha vida e, a imagem seguinte que perscruta a mente é minha lamentação de criança por ter perdido o reloginho que mamãe me dera quando gozava de meus dez anos de vida.
A idéia fantástica que perpassava em meu âmago poderia ser simples coincidência, afinal, o garoto estirado sobre a mesa cirúrgica, segundo o prontuário, possuía nome e sobrenome com iniciais idênticas ao meu nome e sobrenome.
Porém, a idéia fantástica que me salta à mente é se, tanto tempo após o fato, aquele garoto poderia ter encontrado meu relógio, relógio que fora presente de aniversário de minha mãe?
Nesse instante, misto de pavor e balbúrdia tomaram conta do recinto cirúrgico. Os aparelhos não respondiam. A cada milésimo que passava, o garoto perdia o pouco que restava de força vital. Todos faziam o possível, médicos, enfermeiros, auxiliares, mas a cada instante que passava naquele reloginho, constatava-se menos pulsação nas veias; a cada tique-taque, eram menos esperanças de ressuscitar o corpo cuja vida desvanecia a cada instante diante de nossos olhos. A correria era tanta, que ninguém lembrara tirar do pulso do menino o relógio...
Uma, duas, três horas se passaram. Finalmente saímos todos da sala de cirurgias. Segui na frente, na minha mão encontrava-se o relógio do menino. Os pais do garoto, apreensivos, esperavam de mim uma resposta. Estiquei meu braço ao pai, entregando-lhe o relógio; nenhuma palavra fora dita, apenas baixei os olhos e num gesto com a cabeça respondi a pergunta que ambos faziam em seu âmago. O que mais eu poderia fazer? Nada. Nada que os manuais de medicina ensinassem, nada que os enfermeiros tentassem, simplesmente nada adiantaria, porque simplesmente tudo já havia sido tentado. Nesse momento tão incômodo a palavra “nada” me pareceu bastante insólita, porém tão cheia de significados. O nada que perambula pelo espaço sideral deve ser o mesmo nada que habita o corpo já sem vida do ser humano e, quando o nada que circunda o nosso planeta toma seu lugar no corpo sem vida, nesse momento, então, a alma deve tomar seu posto naquele lugar do espaço onde o nada deixou de existir.
Os pais do garoto caíram em prantos. Nem naquele momento nem em nenhum outro tive, eu, coragem de pedir algo sobre o relógio. Aquele garoto fora mais uma vítima cândida em uma guerra urbana desmedida, mais uma morte sem sentido algum numa selva em concreção. Não cabia a mim subjugar o sentimento daqueles pais em hora tão imprópria, ainda perguntando sobre aquele artefato infantil que adornava o braço do inocente.
Até hoje não sei se aquele era ou não o relógio de minha infância, se foi ou não cousa do destino. Mas fico contente, se meu o relógio, que tenha alegrado a mais alguma outra alma pueril e não só a mim.
Tantos relógios na nossa vida, segundo após segundo, minuto após minuto, relógios contando as horas que nos restam da morada na terra; o tempo nunca para, anda sempre num mesmo sentido horário, sempre marcando quando uns nascem e outros deixam essa existência. Relógios são objetos que marcam o tempo, relógios marcam fatos, fatos e relógios deixam sua marca na história do tempo. São ambos, os fatos e os relógios, invenções humanas: os primeiros passam aos jornais e num final derradeiro, aos obituários; os segundos são construídos para marcar o tempo onde transcorrem os fatos e tiquetaqueiam até pararem, enferrujarem e virarem sucata. Relógios são marcadores de fatos, fatos perscrutam o tempo, o tempo – diz o dito - é Senhor dos Destinos.    

Marcius Andrei Ullmann
29 de setembro de 2003.
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